Mitos e Lendas
Santiago, Cayo Carpo e a origem de Matosinhos
[Cleto, Joel. 2010. Lendas do Porto. Matosinhos: QuidNovi, 9-13]
A origem da associação da vieira à devoção e aos caminhos de peregrinação para Compostela encontra-se em Matosinhos. Com efeito, o episódio lendário que explica como é que aquela concha se tornou indissociável do culto a Santiago tem por palco esta praia. Uma lenda que explica também como surgiu este topónimo e que, de tão relevante e provando que afinal as lendas ainda estão bem vivas dentro das comunidades, foi objeto de uma tentativa de roubo no século XXI.
Palestina: a data é o ano 44. Um dos discípulos de Cristo, Tiago Maior, regressa à sua terra natal. Nos anos anteriores, e obedecendo ao apelo que Jesus lhes lançara quando ascendera aos céus — “Ide e espalhai a Boa Nova” — tornara-se num apóstolo e andara difundindo a mensagem do cristianismo por um dos lugares mais recônditos do vasto Império Romano: do outro lado do Mar Mediterrâneo, nos confins da Europa, a Península Ibérica. Mas este seu regresso à Palestina não foi feliz. Acusado de ser cristão, foi preso, martirizado e morto. Discípulos seus, alguns dos quais convertidos entre as gentes da Hispânia, resolvem então sepultar Tiago na Península, num dos lugares por onde andara pregando e desenvolvendo a sua missão apostólica. Recolhem o corpo, colocam-no num barco de pedra que não se afunda e, em apenas sete dias, farão uma viagem, repleta de outros milagres, que os levará até à Galiza, às margens do rio Ulla, onde desembarcarão o corpo e lhe darão sepultura num local que, vários séculos depois, ficará conhecido como Compostela.
Entretanto… Um casamento, uma praia e uma festa. O lugar é, no noroeste da Península Ibérica, o vasto areal que se desenvolve a sul da foz do rio Leça. A data é a mesma. O ano 44 d.C., durante o domínio romano na região. Cayo Carpo, o principal senhor deste território, escolheu este local como o ideal para a boda do seu matrimónio com Cláudia Lobo. A festa que planeara — com um grande número de convidados, banquetes, exibições de lutadores, músicos e dançarinos, torneios e um infindável número de jogos — implicava um amplo espaço. Ora, entre todos os seus domínios, esta vasta praia, ainda sem nome, era aquela que apresentava as condições desejadas. E por isso a escolhera. A cerimónia religiosa — pagã, uma vez que o cristianismo ainda não chegara a estas paragens e à sua elite romana — já terminara.
As refeições haviam-se sucedido, ao som das músicas e das danças. Foi então que o noivo resolveu desafiar alguns dos seus convidados, outros senhores e exímios cavaleiros romanos, para uma corrida de cavalos no areal. Mas com uma particularidade curiosa: o objetivo não seria conseguir atingir em primeiro lugar uma determinada meta colocada algures na praia, mas avançar com os cavalos em direção ao mar, penetrar neste e levar a montada, por entre as águas, o mais longe possível. Quem se conseguisse afastar mais da costa ganharia a corrida.
Foram muitos os cavaleiros que aceitaram o repto de Cayo Carpo e encetaram a cavalgada em direção ao Atlântico. Os menos destros ou os que possuíam montadas de menor envergadura rapidamente ficaram para trás. Os mais arrojados, pelo contrário, avançaram com os seus cavalos até limites surpreendentes. Mas ninguém conseguiu igualar o jovem noivo. A distância a que deixou os seus perseguidores deixou-os a todos perplexos. Até porque algo de milagroso estava a acontecer: afinal o seu cavalo não avançara por entre as águas. Não! Miraculosamente o animal cavalgava, sem se afundar, sobre a superfície oceânica! E de nada valia ao cavaleiro tentar parar a montada. O cavalo prosseguia, desenfreado, sobre o mar, na direção de um pequeno barco que, ao largo, rumava a Norte. Apreensivo, Cayo Carpo, e a multidão que, curiosa, a tudo isto assistia na praia, esperou que se desse o encontro com a embarcação. E, quando tal aconteceu, o senhor romano ficou ainda mais surpreso: o barco havia sido talhado em pedra e, no seu interior, seguia um cadáver! Os tripulantes, contudo, sossegaram-no e explicaram que eram cristãos e que com eles levavam, para lhe dar sepultura, o corpo do seu mestre: Santiago. Profundamente maravilhado com tudo o que assistira e do qual fora também testemunha participativa, e depois de inteirado pelos viajantes da mensagem e ensinamentos de Jesus, Cayo Carpo converteu-se de imediato ao cristianismo.
O regresso a terra foi seguido de um modo expectante por quem a tudo isto assistira da praia. Precisavam de uma explicação e o cavaleiro seguramente que a tinha. Só que, se de início o cavalo continuou a galgar sobre as águas, de repente o animal e o seu dono desapareceram, engolidos pelas águas do mar. E quando, ao fim de alguns instantes, o desespero começava a tomar conta de todos, temendo pelo que poderia ter acontecido ao jovem, eis que o cavaleiro e a sua montada reaparecem, saindo das ondas para o areal. E novo milagre acontecera: Cayo Carpo e o cavalo vinham totalmente recobertos por vieiras — um tipo de concha que, desde então, passou a ficar associado ao culto a Santiago e aos seus caminhos de peregrinação.
A multidão aproximou-se rapidamente do noivo e, face a estes fenómenos maravilhosos que haviam presenciado e na sequência das explicações que então lhes é fornecida pelo jovem senhor romano, todos os presentes se converteram também ao cristianismo. E assim se explica como é que, desde épocas muito remotas, os habitantes desta região se tornaram cristãos; de que forma é que a vieira passou a ficar associada à devoção a Santiago de Compostela; e também se explica como é que surgiu o nome desta praia. Isto porque, nas versões escritas mais antigas desta lenda, nos é descrito que, quando Cayo Carpo reaparece vindo dos fundos do mar, ele e o seu cavalo vinham todos “matizados” de vieiras. E por isso o cavaleiro passou a ser popularmente designado por “o matizadinho” e o areal onde tudo isto se passou por praia do… matizadinho. E, ainda segundo a lenda, foi da posterior evolução desta designação que surgiu o topónimo Matosinhos.
Senhor de Matosinhos
[Cleto, Joel. 2010. Lendas do Porto. Matosinhos: QuidNovi, 15-19]
Aquele que é porventura o mais famoso náufrago da região do Porto deu à costa, segunda a lenda, no dia 3 de maio do ano 124. Desde então não mais deixou de operar milagres e está na origem daquela que é, há já muitos séculos, uma das maiores romarias do país: a do Bom Jesus de Matosinhos. Para lá da lenda encontramo-nos perante aquela que é provavelmente a mais antiga escultura, existente em Portugal, de um Cristo crucificado em tamanho natural.
Tudo começara há mais de um século e meio, na distante Palestina, nos dias seguintes à crucificação de Cristo. Nicodemos que, juntamente com José de Arimateia, havia retirado o corpo de Jesus da cruz e levado até ao sepulcro, guardara consigo aquele que se viria a transformar no tecido mais famoso da História: o santo sudário — o pano que envolvera o corpo ensanguentado do crucificado e no qual ficou impressa a sua imagem. Convertido à mensagem de Cristo, fortemente impressionado com tudo o que assistira, e porque possuía um dom especial para trabalhar a madeira, Nicodemos resolve, então, inspirado na imagem do sudário, esculpir várias imagens de Jesus crucificado. Fez cinco. Mas, entretanto, e na sequência da perseguição aos cristãos encetada por romanos e judeus, acaba por as lançar ao Mediterrâneo procurando evitar a sua associação aos seguidores de Cristo. Durante os anos e séculos seguintes estas imagens vogarão nas águas e serão recolhidas no alto-mar ou acabarão por dar à costa. Foi o que aconteceu à mais perfeita das que Nicodemos produzira. Depois de atravessar o Mediterrâneo penetrou pelo estreito de Gibraltar, subiu ao longo das costas da Península Ibérica e acabou por dar à costa, no dia 3 de maio do ano 124, no lugar do Espinheiro, no areal de Matosinhos. Recolhida com grande alegria e fé pela população local a imagem foi recolhida numa igreja localizada nas proximidades — a de Bouças — e passou a ser objeto de grande devoção. Conhecida por Bom Jesus de Bouças (só a partir do século XVI começará a ser designada por Senhor de Matosinhos) à imagem faltava-lhe, no entanto, um braço. Nada que tenha preocupado os locais. Mandar-se-ia fazer e aplicar um novo. Mas, por muito bom que fosse o artífice, ou a madeira não era igual, ou o trabalho não ficava com a mesma qualidade ou, pura e simplesmente não encaixava. E quando se conseguia que encaixasse era certo e sabido que, no dia seguinte, quando se entrava na igreja, se encontrava o braço novamente solto. A Imagem parecia, pois, recusar qualquer enxerto. E assim permaneceu durante 50 anos… até este dia.
Nessa manhã uma pobre mulher, mãe da miúda surda-muda, fora recolher lenha à praia de Matosinhos, no mesmo lugar do Espinheiro, onde há cinco décadas, tinha sido recolhida, das águas do mar, a Imagem do Bom Jesus de Bouças. Em dias de tempestade, como este, o oceano atirava ao areal grandes pedaços de madeira que ela utilizaria, depois, para alimentar o fogo da cozinha. Chegada a casa fez a fogueira e foi alimentando-a com alguns dos paus que trouxera da praia. Contudo, e de um modo estranho, havia um comprido lenho que repetida e permanentemente saltava para fora do fogo, por mais que a mãe da miúda e as vizinhas insistissem em o voltar a colocar na lareira. Foi então que a criança falou…
Perante o milagre, e entre a alegria e a perplexidade, de imediato algumas das mulheres agarraram naquele pedaço de madeira e levaram-no até à igreja de Bouças para verificar se era verdade o que a menina dissera. A constatação foi novamente surpreendente e miraculosa. Não só era o braço em falta, como este se encaixou de imediato e de tal forma no resto da escultura que, desde esse dia, nunca mais foi possível perceber qual o braço que durante anos estivera em falta. E, também a partir desse dia, nunca mais deixaram de se multiplicar os milagres atribuídos ao Senhor de Matosinhos.