Crónica da Cidade
Crónica n.º 1 - Álvaro Siza Vieira
22 de Outubro de 2016
O convite que me foi dirigido pela Junta de Freguesia de Matosinhos-Leça da Palmeira para escrever a primeira crónica da cidade fez-me percorrer, na memória, todas as obras que projetei desde o início da minha carreira. Não se trata apenas de escrever sobre as minhas obras existentes em Matosinhos e Leça da Palmeira. Trata-se, sobretudo, de escrever sobre a minha identidade e a identidade de outros tantos matosinhenses! Dessa forma, revisitarei algumas das minhas obras de norte (Leça da Palmeira) a sul (Matosinhos), algumas ladeadas pelo azul do Atlântico, outras pelo verde das árvores.
Entre 1954 e 1957 debrucei-me sobre a construção de quatro habitações em Matosinhos: um grande desafio de início de carreira. Duas habitações unifamiliares e outras tantas geminadas inseridas num “mar” de moradias de subúrbio por entre a malha cruzada das ruas permitiu-me unifica-las através da linguagem arquitetónica; deliberadamente intimistas, estas quatro habitações preconizaram, sobretudo, em ambiente fechado, fomentar o paralelismo entre a vida familiar e a vida individual.
Quase ao mesmo tempo, o Centro de Assistência Paroquial de Matosinhos sentia necessidade de se alargar e responder a novas valências. Salas de reunião e de trabalho e uma biblioteca foram o mote para esta segunda fase da obra. Os materiais utilizados mantiveram, grosso modo, o traço identitário da primeira fase da obra. O uso de cristal nas divisórias entre estas salas, a continuidade e forma do teto de omnilite, modulado pelas asnas em parte aparentes, proporcionam o maior desfrutamento do espaço interno.
A Casa de Chá da Boa Nova assume-se como uma das primeiras e grandes obras do modernismo português. O meu relacionamento muito próximo com o Fernando Távora – um excelente professor, pacientíssimo com os alunos e com os jovens e inexperientes colaboradores e uma das referências incontornáveis da Escola do Porto – acicatou a vontade de desenvolver uma linguagem própria e que vincasse, doravante, a minha vontade de aprender inovando. As diferentes cotas do edifício e os envidraçados, conjugados com uma análise cuidada das condições climáticas, direcionaram a construção para madeiras de alta qualidade e para o uso de lajes de betão, apoiando sobre vigas transversais que descarregam em pilares do mesmo material ou nas paredes de perpeanho que limitam o edifício. A 25 de maio de 2011 foi classificada como Monumento Nacional segundo as diretrizes da Direção-Geral do Património Cultural.
Em 1957 iniciei a colaboração no projeto da Piscina da Quinta da Conceição procurando ir ao encontro da expressão arquitetónica magistralmente concretizada no pavilhão de ténis de Távora. Quando me disse “o melhor é você levar isso para casa, desenvolvê-lo por si; prometo acompanhar o trabalho, sempre que julgue necessário” assim o fiz e em 1961 apresentei novo projeto mais demarcado da linguagem impressa no pavilhão de ténis. Estávamos perante um momento irrepetível de renovação da arquitetura portuguesa, e, na Quinta da Conceição, era agora evidente um particular diálogo com a natureza.
A Piscina das Marés insere-se no espírito da valorização da orla marítima de Leça da Palmeira. No início dos anos 1960 a linha entre a Póvoa de Varzim e Matosinhos assume-se como espinha dorsal deste desenvolvimento litoral. Neste projeto aproveitou-se a topografia do terreno, não só por razões económicas, como para, sobretudo, evitar um corte violento da paisagem. Esta construção cumpriu o propósito definido pela Câmara Municipal de Matosinhos de urbanizar a zona entre aquele núcleo e a Boa Nova, e, nesse âmbito, o local escolhido reunia as condições ideias para a concretização do projeto.
António Nobre, ultrarromântico, simbolista, decadentista e saudosista da geração finissecular do século XIX, imprimiu à sua obra uma marca de lamentação e nostalgia imbuída de subjetivismo, ao mesmo tempo suavizado pela autoironia, foi homenageado pela Câmara Municipal de Matosinhos por ocasião do primeiro centenário do seu nascimento. A edilidade entendeu – e bem! – erigir um monumento, na zona do Castelo de Leça, que descreve em alguns dos seus versos, maravilhosamente, o seu ambiente físico e humano. À parte o problema de enquadramento do conjunto escultórico, da autoria do Mestre Barata Feyo, na zona indicada, o ambiente que Nobre foi descrevendo ao longo da sua vida encontrava-se profundamente alterado, muito pela influência do mar, tanto que o monumento acabou por ser construído na zona da Boa Nova.
O Palacete da Família Costa Braga, situado na Avenida D. Afonso Henriques, junto ao Jardim de Basílio Teles e aos Paços do Concelho, suscitou, por ocasião de 1993, o interesse da Câmara Municipal para aí instalar a Casa da Juventude. Do programa constava a imperatividade de reutilizar o edifício como espaço de convívio, de informação e orientação, formação e apoio a iniciativas. Ao longo de dois pisos – e mantendo sempre o desenho original do edifício –, respeitando a sua estrutura e materiais originais, adaptou-se o espaço à sua nova finalidade.
Em 1995 a Alfândega de Leixões quis mudar as suas instalações para o edifício da recolha dos transportes automóveis da APDL, situado em Leça da Palmeira, na área da confluência do molhe Norte e da Avenida da Liberdade. Este edifício, de evidente interesse arquitetónico, enquadra-se num projeto unitário de readaptação do desenho exterior do edifício, tarefa facilitada pelo facto de se conservarem nos arquivos da APDL os desenhos do projeto inicial, permitindo-nos, assim, uma recuperação rigorosa.
A intervenção na Avenida da Liberdade em Leça da Palmeira foi uma necessidade justificada tão-somente pelo desfasamento entre o seu caráter de origem de via periférica e panorâmica, e a importância urbana que, mal ou bem, posteriormente adquiriu. De via destinada a utilização dominantemente ligada ao mar e às praias transformou-se em importante ligação aos centros que a norte se foram desenvolvendo, e praticamente a única via de serviço da massa edificada que cresceu explosivamente do lado nascente da própria avenida. A premente substituição, à data, dos oleodutos desde o Porto de Leixões até à Refinaria obrigou à deslocalização da avenida para nascente para que os novos oleodutos e a avenida pudessem, de futuro, coexistir. Procurou-se, então, criar um novo traçado da Avenida, compatível com o dos oleodutos, adequando a altimetria às concordâncias com os arruamentos que entroncam com ela; na assunção de uma filosofia de tráfego automóvel, urbano, mais lento e disciplinado; na criação de aparcamento adequado, não descurando, de igual modo, a beneficiação do espaço de lazer. Passou a ser limitado o acesso de automóveis à Capela e à Casa de Chá da Boa Nova, passando a fazer-se exclusivamente pelo lado norte do Farol e propôs-se a reorganização dos terrenos envolventes ao monumento a António Nobre.
A Casa de Chá da Boa Nova e a Piscina das Marés de Leça da Palmeira, detendo caráter emblemático no panorama da arquitetura portuguesa do século XX, integram a paisagem litoral. A fixação conjunta da zona especial de proteção (ZEP), sendo que cada um dos monumentos goza, por si, dos limites definidos na ZEP, atenta às especificidades do local e à sua relação com o edificado, resulta do entendimento da unidade da localização, topografia e pontos de vista, sendo que a ZEP tem em consideração a implantação dos edifícios e sua relação com a envolvente terrestre e marítima, inclusivamente na medida em que esta constitui parte determinante do projeto arquitetónico, reconhece igualmente a morfologia do terreno, o enquadramento paisagístico e os pontos de vista, e ainda os condicionamentos determinados pelas atuais servidões e instrumentos de gestão do território.
Matosinhos e Leça da Palmeira são, portanto, terras riquíssimas em história, património, identidade e cultura.